O Retorno do Mago
Mais uma de minhas diversas histórias inacabadas. Acho que tenho algum bloqueio que me impede de seguir uma história de modo linear, então o que me resta é escrever inícios, e depois mais inícios.
Mas este início eu considero excepcionalmente melhor que qualquer outro que eu já tenha me dado o trabalho de desenvolver, e por isso irei postá-lo aqui. Embora eu tenha um leve pressentimento de que, talvez, eu leve esta série adiante. Estou gostando dos resultados. E enquanto isso durar irei postar capítulos.
Mas este início eu considero excepcionalmente melhor que qualquer outro que eu já tenha me dado o trabalho de desenvolver, e por isso irei postá-lo aqui. Embora eu tenha um leve pressentimento de que, talvez, eu leve esta série adiante. Estou gostando dos resultados. E enquanto isso durar irei postar capítulos.
OBS: Alguns capítulos aqui postados podem apresentar erros, ou seja, estão desatualizados. Eu posso trocá-los numa outra ocasião mais oportuna, portanto aconselho que leiam por este site:
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Está completamente atualizada e corrigida a versão do Fanfiction.
O Crepitar da Fogueira
- Spoiler:
- A carroça sacudiu. A cabeça latejava e doía com uma frequência insuportável.
Ao abrir os olhos, Baudry Grimbald deu uma piscadela e olhou ao redor – estava no chão de uma carroça, sobre um monte de palha suja e pisoteada. Encontrava-se vestido com um trapo velho e rasgado, não com seu comumente utilizado manto verde-escuro. Suas costas estavam dormentes.
Percebeu que um silêncio ensurdecedor de soldados frios e prisioneiros estaria sob o comando do grupo, não fosse pelos cascos de cavalo que retumbavam fortes na estrada pavimentada. Estava perdido. Não sabia que lugar era aquele.
Pior ainda, não se lembrava do motivo para estar ali, muito menos porque fora feito prisioneiro: suas mãos estavam atadas com uma corda barata e velha, que com um único toque leve e suave de uma faca iria partir-se no meio. E, ao olhar para o lado negro do crepúsculo, piscou algumas vezes e pôs-se sentado. Ao seu lado estava sentado um homem forte e robusto, de fortes braços e expressão séria, que o olhou com certo desdém. Um verdadeiro prisioneiro?
Enquanto diversas ideias cruzavam perdidas em seus pensamentos, foi surpreendido pela voz grossa e firme:
- Finalmente está consciente de novo. Fiquei pensado se estava morto, mas eu ainda o via respirar como uma princesa adormecida. Estivera desmaiado desde quando foi pego nos Campos Cinzentos. Malditos arlianos!
Após escutá-lo, Baudry concentrou-se e tentou se lembrar. O que diabo teria acontecido?
Com a cabeça lentamente esfriando e retomando a calma, enquanto a dor de cabeça cessava, um súbito retorno de informações compareceu milagrosamente a sua mente.
Recordava-se de atravessar os Campos Cinzentos em direção à Wistan, a casa dos orgulhosos érmicos.Tinha como objetivo encontrar-se com seu irmão, um artesão de fama num vilarejo sem importância e ajudá-lo em seu trabalho. Levaria uma vida calma e longe de conflitos. Embora tudo isso tenha, infelizmente, acabado num piscar de olhos. Um guarda arliano surgira diante de sua carroça e lhe acusara de desertar de uma batalha que ocorrera no Vale da Folha.
Apesar de compreender seu estado, achava irônico o que lhe acontecera. Tinha sido confundido com um soldado érmico. Morreria no lugar de um homem e, pelo menos, salvaria uma vida. Porém este era apenas seu pensamento. Sabia que poderia estar errado, mas preferia não pensar nessa possibilidade.
Despreocupando-se cada vez mais ao pensar nisso, enquanto aprofundava-se em suas memórias recém-descobertas, sabia que mesmo se saísse vivo não teria para onde ir. Era um atendente de hospedaria temporariamente, e agora provavelmente o emprego já não lhe pertencia mais. Chegara também à conclusão que a fronteira de Wistan com Alestan certamente estaria sob o controle de ambas as nações, por conta de ter sido pego e levado numa distância de duas horas do local. Não haveria um meio seguro de encontrar o irmão.
Assim, tinha medo do que poderia acontecer dali para frente. Estava inseguro e não sabia sequer para onde estava indo. Apesar de tentar reorganizar seus pensamentos embaralhados e confusos sobre o rumo de sua vida e encontrar um modo de fugir, sabia que seria inútil e impossível. De um modo ou de outro, iria morrer.
Sem outra opção, decidiu em uma vã tentativa fazer o érmico ao seu lado unir-se aos seus pensamentos e convencer os guardas a soltá-lo.
- Este não é meu lugar. Não sou um soldado – admitiu. – Eles precisam entender...
O homem deu de ombros, jogando a esperança de Baudry correnteza abaixo.
- Eles não se importam. Simplesmente estão prendendo quase todos os érmicos que cruzam o vale ou os Campos Cinzentos, declarando-os desertores. Pelo visto querem prevenir que nenhum soldado consiga escapar – sorriu. – E, ao menos comigo, isso deu certo. Eu lutei por nosso reino e assumi que guerreei no vale.
Baudry baixou os olhos, pensativo. Estava literalmente com o destino traçado. Não entendia como o homem conseguia manter-se tão orgulhoso e sorridente mesmo sabendo que logo não estaria mais vivo. Era arrepiante e, ao mesmo tempo, honroso.
De repente, Baudry percebeu uma figura encolher-se no fundo dos bancos da carroça. Escondia-se por baixo de uma capa e mantinha-se silencioso, sem demonstrar interesse na conversa.
- Quem é ele? – perguntou, sem medo de que ele o escutasse. Começou a crer que ali eram todos irmãos que passariam seus últimos momentos lado a lado.
- Sinceramente, eu também gostaria de saber – assumiu o érmico, virando-se para o homem. – Como é seu nome, soldado?
Ele encolheu-se ainda mais sob sua capa, entretanto disse bem baixinho:
- Estmund... Estmund Godart.
Baudry e o outro fizeram esforços para escutar, mas conseguiram. E quando trocaram olhares entre si, disse:
- E quanto a você? Como se chama? – ele ergueu a mão ao érmico. – Meu nome é Baudry Grimbald.
Desfazendo-se do olhar desdenhoso, o homem apertou a mão oferecida.
- Ulric Mão-de-Ferro; não tenho família para servir-me com um segundo nome.
Baudry abanou a cabeça, fingindo compreender tristemente o que Ulric lhe disse, já que não se importava nem um pouco com ele e seu passado. Não passava de um fugitivo sem vergonha, que continuara ainda assim extremamente honrado a seu povo.
- Sabe para onde estão nos levando? – perguntou, sentando-se no banco. Olhou à frente e viu, para seu desprezo, pelo menos outras duas carroças de prisioneiros conduzidas pelos soldados arlianos e mais um punhado de outros soldados montados em cavalos de raça, armados com arco e flecha ou espadas.
Ulric pensou por um instante na pergunta e respondeu cabisbaixo:
- Ouvi um murmuro saindo da boca de uns soldados, mais cedo, que disse Dunestan – ele respirou fundo. – Ouvi dizer que lá eles aleijam os prisioneiros ou os deixam sofrer até a morte, na maioria das vezes. E os sortudos são aqueles que simplesmente são enforcados ou decapitados.
Baudry arrependeu-se de ter feito a pergunta, que nada fez além de deixar-lhe com mais temor.
Ouvira em seu passado muitas histórias horrendas sobre Dunestan, de homens que perdiam os braços e pernas e ainda assim continuavam vivos; tinha quase toda certeza de que não eram humanos que realizavam tais aberrações. Fosse um ignis ruivo ou um mortalmente bruto de um geryon, mas um humano? Qualquer homem em plena consciência sabia que nem na pior das hipóteses devia-se cometer uma atrocidade de tão alto grau. Mas esse era somente o pensamento de Baudry, que tentava livrar-se de maneira ou outra da morte. Mas era inevitável. Morreria, e seu irmão continuaria aguardando, ansioso, por sua impossível chegada. Era com isso que estava preocupado. Era por isso que desejava viver.
Orou para que tivesse o direito ao menos de enviar uma última carta. Não queria que seu irmão continuasse a ter falsas esperanças de que um dia ele alcançasse sua casa distante e cheia de calmaria. “Sinto muito, Elmer”, pensou dramaticamente olhando para os campos verdes e ricos em árvores ao seu redor, enquanto a noite aproximava-se, devagar, trazendo consigo um vento gélido e úmido. “Uma bela escuridão” murmurou para si, sorrindo mentalmente enquanto a carroça passava sobre pequeninas valas que lhe irritava.
E como um trovão, o soldado cujo conduzia a carroça ergueu o pescoço e gritou o mais alto que conseguira:
- Pararemos por aqui, Roy – ele olhou para o lado, em direção a uma clareira completamente desguarnecida de árvores. – É o melhor lugar que encontramos em muito tempo! – e apontou quando os outros soldados se viraram para vê-lo.
Roy, aparentemente hesitante em descansar ou dormir no meio da floresta, assentiu devagar e conduziu os cavalos a se virarem. O outro soldado, que se encontrava na carroça do meio, sequer ousou obstinar as ordens do colega. Baudry achou que fosse de uma patente menor, por conta da preocupação visível no rosto pálido.
Seguiram cuidadosos em direção à clareira mais afundo na floresta de poucas árvores, para que não houvesse o risco das carroças tombarem ou quebrarem.
A vegetação escassa continha diversas árvores típicas da região sul de Alestan, portanto, naquele lugar, espécies comuns do norte vieram a surgir. Nogueiras erguiam-se altas sob seus ramos grossos de folhas verdes e espaçosas, que formavam copas grandiosas e belíssimas a olho nu. Em minoria, alguns carvalhos imensos repousavam ao redor da clareira, com troncos fortes e altos, de cascas cinza e estranhamente lisas. Um lugar agradável e bonito.
Quando as carroças e os outros soldados chegaram, a noite já havia se estendido por todo o céu, como um imenso cobertor negro repousando sobre o mundo. Sob a escuridão silenciosa, um dos guardas viu-se obrigado a acender uma tocha. O ondular ardente do fogo relaxou os olhos de ambos ali presentes. Seria apavorante passar uma noite fria sem ter onde se aquecer.
- Mantenham as carroças distantes umas das outras – ordenou o condutor da carroça de Baudry. – Não vamos perder mais prisioneiros por isso. E vamos começar a arrumar as tendas. Imediatamente!
E assim foi feito, dando origem a conversas fiadas e risos entre os soldados. Enquanto alguns organizavam as tendas, montando-as com falsa dificuldade para prolongar a conversa, outros juntavam gravetos para aproveitar o fogo da tocha numa fogueira.
Um dos arqueiros rapidamente pôs-se a vigiar os prisioneiros, para evitar fugas enquanto levantavam acampamento. Mas ao invés de manter distância, ele aproximou-se de Baudry e entregou-lhe uma bolsa com cinco maçãs e um pão. O érmico agradeceu com uma breve reverência e pegou uma maçã, já que não tinha muito apetite. O resto guardaria para quando Ulric e Estmund acordassem, de manhã. Os dois já dormiam como pedras no monte de palha.
Mais tarde, após os soldados terminarem de erguer as tendas, os cavalos foram amarrados em árvores e todos se reuniram ao redor da fogueira, cantarolando e bebendo o resto de vinho que aparentemente guardavam há dias. O arqueiro apressou-se a juntar-se aos amigos, mas manteve-se atento a qualquer movimento suspeito.
-Eu realmente não vejo a necessidade de tudo isso, sabe? – disse um dos soldados. – Dessa guerra entre arlianos e érmicos. Fomos irmãos um dia, até finalmente Alberic declarar guerra à Wistan – ele bebericou um gole do vinho. – Eu lutei com amigos, mas do lado contrário. Transformei bons érmicos em prisioneiros contra a minha própria vontade. É horrível! Nossos inimigos são os geryons do oeste, e não os érmicos!
Roy riu, em tom de deboche.
- Guerra não é para quem tem coração mole, Al. Devo concordar que é ruim, mas no campo de batalha deve-se deixar a amizade e a família de lado e pensar em sobreviver... E em matar. Não importa se quem está lá foi ou é seu amigo. Se estiver entre os inimigos, deve morrer e pronto.
Al franziu o cenho e começou a protestar:
- Eu não tenho coração mole. Sei que terei de matar, pois foi isso o que eu fiz! – ele parecia bêbado e zonzo. – Você não sabe de nada, Roy. Nada do meu passado.
- Eu sei que você deve comer alguma coisa e ir dormir – disse Roy, oferecendo-o um pedaço de seu pão.
Al pareceu se enfurecer, mas conteve-se ao ver a reação de um dos superiores. Não estava tão bêbado a ponto de desafiá-lo:
- Chega – ordenou. – Eu não quero que iniciem uma discussão. Se forem fazer isso, façam bem longe daqui, num bosque esquecido ou nos Campos Cinzentos.
Roy encolheu os ombros, entendido em não contradizê-lo.
- Sinto muito, senhor Aeluin. Não tive a intenção.
- Eu sei que não teve – o líder virou-se para Al, que permanecia imóvel. – Ele é quem não está de cabeça fria. Vá dormir Al, assim como lhe foi sugerido. A viagem pelo visto lhe cansou e logo voltaremos para a estrada. Alguém tem algo a dizer?
O soldado resmungou em voz baixa e cambaleou em direção a uma das tendas, carregando um pedaço de pão. E nenhum guarda ousou responder ao líder. A autoridade em sua voz era máxima.
Sem sucesso, ele decidiu retirar-se, insatisfeito. Após isso ninguém quis mais conversar. Não havia nada a ser dito quando ocorria uma discussão. Aeluin manifestou-se, e isso para eles era mais que um motivo para não tornarem a falar.
E um silêncio repentino ocupou o ar, levando embora a curta conversa e o ânimo desperto nos homens. Muitos decidiram ficar, para aquecerem-se ao lado da fogueira, já outros foram para dentro ou montaram guarda diante das carroças. Antes pareciam homens felizes e calmos, não com soldados arlianos que cometiam atrocidades em Dunestan. Agora eram os mesmos. Frios e sem expressão, sem família ou amigos – exatamente como Roy dissera. Não deviam necessariamente estar no campo de batalha para que aquilo acontecesse, mas partindo do momento em que atuavam como soldados deviam se esquecer de tudo. O importante agora era sobreviver e continuar. E no pensamento de Baudry, Aeluin nem nos momentos de distração e diversão era capaz de deixar de lado este instinto. Talvez por isso ele demonstrava-se tão apto a liderar mais que qualquer outro soldado que ali estivesse. Até mesmo Baudry, que pouco sabia daquelas coisas, arrepiou-se ao escutá-lo. Certamente baixaria a cabeça e ficaria quieto caso fosse Roy ou Al.
Mas mesmo sem a ordem de Aeluin, baixou a cabeça e lentamente tombou em direção à palha suja e pisoteada. Quando caiu, cansado demais para ajeitar-se, permaneceu com os olhos fechados e dormiu sem sonhar. Afinal, também estava cansado demais para isso.
Baudry arregalou os olhos, assustado, no meio da noite. Ouvira alguma coisa e, ao se manter atento, foi capaz de escutar o crepitar suave da fogueira que ainda queimava viva e ondulante à frente das tendas. Três soldados deitavam-se ao redor dela, e um deles estava acordado. Ciente de que também ocorrera alguma coisa.
Quando o prisioneiro sentou-se, o arqueiro até então despercebido imediatamente disse em voz baixa:
- Cuidado, érmico. Se quiser sobreviver, fique quieto e não se mova.
Baudry entendeu aquilo como um aviso e assentiu com a cabeça. Mas não sabia se ele referia-se a sua flecha ou ao estranho barulho que escutara ao acordar, feito um arbusto sendo remexido. Mas tão rápido quanto seu pensamento obteve uma resposta.
Um zumbido cortou o ar ao seu lado, e quando se virou para vê-lo, avistou uma flecha cravada na árvore cuja separava as tendas.
- O que é isso? – perguntou-se o guarda ainda acordado ao redor da fogueira, levantando-se e chutando seus amigos para que acordassem. – Vamos, levantem! Levantem todos!
Sua voz pareceu assumir a autoridade de Aeluin durante um instante, no momento em que a maioria dos homens retirara-se das tendas, incluindo ele. Mas foi tarde. Dos bosques ao redor surgiram vários geryons, com suas peles roxas e seus braços peludos com a mesma resistência que um escudo de pele. Seus olhos tortos transmitiam medo e insegurança a quem os encarava; ao menos fora isso o que Baudry sentira, pois sabia que estavam ali para matar e roubar.
Os habitantes da floresta ergueram seus machados e um deles gritou alguma coisa, numa língua distinta.
- Não entendemos sua linguagem porca – disse Aeluin empunhando sua espada, ainda com sono. – Mas temos uma em comum, que é a língua do metal. Creio que saiba usá-la tão bem quanto eu, não estou certo?
Um dos geryons deu um forte soco na cabeça do qual falara e disse num sotaque diferente:
- Desculpe-me a insolência de Mermadak. Ele é muito precipitado. Mas o que vocês, nobres soldados érmicos, fazem no meio da nossa floresta?
- Érmicos? – repetiu Aeluin, rindo. – Não nos compare ao povo sujo de Wistan. Nós somos arlianos, de Alestan, e aqueles são os érmicos – ele apontou para uma das carroças. – E estamos aqui por que não tínhamos onde passar a noite. Não sabíamos que florestas tinham donos. E pelas minhas informações, quem domina essa região é Lorde Juhel, não vocês.
O geryon rugiu furioso.
- Meu nome é Melmidoc Gunneuare, e eu sou o senhor do povo da floresta. Eu domino essa região. E por isso eu ordeno que saia daqui, antes que eu lhe corte a cabeça.
Baudry, pasmo com tudo aquilo, mal percebera que Ulric e Estmund haviam acordado. Ambos também se mantinham atentos à conversa, que brevemente poderia tornar-se uma briga que incluiria até os prisioneiros.
Aeluin agarrou-se mais ainda ao cabo da espada, prestes a agir, quando um vento forte soprou pelo local. Uma das tendas voou e a fogueira apagou-se, levando embora a única fonte de luz do local.
Uma friagem aproximou-se devagar, trazendo consigo uma neblina obscura e úmida. Todos ficaram quietos e parados, tentando processar o que realmente acontecera ali. Rapidamente a névoa tornou-se mais espessa e branca, e ficou impossível de enxergar.
O líder, sem palavras para descrever o que vira, disse:
- O que acham que estão fazendo? Isso é... – ele fora interrompido por uma pequenina faísca que aparecera de repente diante de seus olhos. Era brilhante como uma estrela e atraente como o calor de uma fogueira. Não era uma faísca qualquer, ou talvez nem fosse. Era uma luz tão bonita e forte que todos a fitaram, curiosos e atentos. Lentamente, o brilho tornou-se mais intenso e uma luz tão vermelha quanto sangue ocupou-a por completo. Não era mais necessário fogo para aquecer-se. Aquilo exalava um calor tão confortante e admirável que muitos praticamente esqueceram o que estava acontecendo.
Quando o líder esticou a mão para tocar a luz, o objeto distanciou-se como se estivesse vivo e o brilho, mais intenso e poderoso, começou a se esvair e apagar. E tão veloz como o vento, explodiu-se num espetáculo de faíscas exuberantes e vermelhas, como pequenas crias ou filhotes gêmeos.
Devagar, elas desceram em direção ao chão, sem apresentar nenhuma outra beleza exceto o brilho. Enquanto todas seguiam o mesmo destino de se apagar ao contato com a terra, uma em particular continuou no ar, dançando e voando, em direção a uma das tendas.
Admirados com tudo aquilo, nenhum dos homens esperava por um acontecimento tão repentino e devastador como aquele.
Quando a faísca tocou a tenda, a luz avermelhada e brilhante cobriu-a por inteiro e despertou os olhos distraídos de todos que ali compareciam. Após isso, o brilho tornou-se mais fraco e alaranjado, até ser tomado por inteiro pela cor furiosa de fogo e seu rugido assustador.
A tenda havia sido incendiada.
Desesperado, o soldado que ainda dormia levantou-se num pulo, debatendo-se para espantar as chamas, mas sem sucesso.
- Bruxos! – gritou Aeluin, mais assustado do que devia, ao ver o companheiro cair morto sobre a fogueira apagada. – Arqueiros!
Como um raio, o homem desviou a mira do arco da carroça de Baudry e virou-se para Mermadak, atirando-lhe a flecha sem hesitação. Acertou-o bem no peito, atravessando-o num espichar de sangue.
E num piscar de olhos, ambas as partes iniciaram uma batalha. Gritos ecoavam pelos bosques e o tilintar das espadas ensurdeciam os homens. Aproveitando o momento, Ulric agarrou Baudry pelo ombro e gritou:
- Se quiser sobreviver, siga-nos! – e subiu no banco e preparou-se para saltar.
Sem pensar duas vezes, Baudry pulou no banco e imitou o salto de Ulric. Estmund estava na frente, quase apagado em meio à névoa, olhando repetidas vezes para trás.
Os érmicos correram lado a lado durante muito tempo, até que os sons de gritos e aço desaparecessem completamente. Haviam conseguido escapar. Não estariam mais mortos depois de um dia, e tudo por conta de um acontecimento misterioso.
Mas Baudry sabia que não havia sido os geryons os responsáveis por aquilo. Seus olhos estavam admirados e horrorizados ao mesmo tempo, assim como estavam os dos soldados. O fogo levantara-se da fogueira e ocupara lugar na tenda. Era isso o que havia acontecido, e disso Baudry tinha certeza. Mas como acontecera ele não sabia, porém pretendia descobrir.
Entretanto, por hora, pensaria somente em fugir para bem longe ao lado de Estmund e Ulric, até que estivesse seguro o suficiente para partir sozinho. Depois tornaria a pensar em tudo aquilo, que, bem no fundo, sabia que o era. Magia.
Dragão Adormecido
- Spoiler:
- A manhã estava fria e úmida. Uma chuva aproximava-se, embarcada nas nuvens negras e carregadas que alertavam sua visita.
Era especialmente nesses dias chuvosos que Joss apreciava o conforto de sua hospedaria. Caravanas inteiras de viajantes e comerciantes muitas vezes eram obrigadas a passar uma noite - ou noites - na muito formosa Dragão Adormecido. Embora isso, certos momentos, dependia do quão bom era a habilidade de persuadir do humilde Joss, que mal recebia visitantes por conta do local visto como inabitado. Se a chuva estivesse fraca, sabia que a chance de receber companhia seria bem menor. E, caso surgisse alguém diante de sua portaria enquanto o dia estivesse nessas condições, teria de persuadir a pessoa a ficar ou fazê-la comprar algumas de suas mercadorias mais caras.
Porém o que estava para vir era uma tempestade. Traria ventos fortes e destrutivos, que tomariam conta da região por dias. Para melhorar a situação, ele soubera de uma batalha que ocorrera há poucos dias, num vale não tão distante de sua estalagem. Soldados e mais soldados poderiam estar buscando o conforto de uma cama, e com certeza não iriam se importar de dormir na hospedaria Dragão Adormecido. Era sua chance de receber dinheiro e finalmente livrar-se daquele lugar que julgava não somente inabitado, mas totalmente inóspito. E para isso teria apenas de aguardar e torcer para que suas previsões estivessem corretas; não queria ser surpreendido por um viajante alegando que os soldados rumaram mais ao sul, em direção a Wistan.
Para ele, essa possível desgraça dos soldados era a melhor coisa que poderia ocorrer. Não que o desejasse, é claro. Sabia apenas que, caso a batalha tivesse sido ruim para os érmicos que desertaram - de acordo com as informações que obtivera -, cedo ou tarde algum deles poderia surgir elegantemente na porta da estalagem.
Sendo assim, os arlianos teriam saído vitoriosos e isso seria excelente. Provavelmente os feridos retornariam e passariam um dia inteiro comendo e relaxando sob o conforto do lugar, como uma tropa fizera semanas antes.
Refletindo sobre tudo isso, fora surpreendido com o ranger da velha porta abrindo-se e a luz do sol recém-nascido adentrando e engolindo toda a escuridão da hospedaria.
Uma figura encapuzada surgiu diante de Joss, com uma espada na cintura e um escudo nas costas. Seria um desertor?
- Sinto em lhe incomodar tão cedo, estalajadeiro – disse o homem, observando as lamparinas ainda apagadas. – Pelo visto acordou há pouco tempo.
Joss sorriu, envergonhado.
- Ah... É que eu não venho recebendo tantos visitantes nesses tempos – ele apressou-se em abrir as janelas, andando de um lado para o outro do salão. – Desculpe-me. Eu realmente não esperava que alguém fosse aparecer – mentiu. Era isso o que mais esperava dali em diante.
- Você é o dono do lugar. Eu não lhe devo desculpas e você nada me deve – ele ergueu as sobrancelhas. – Lhe deverei dinheiro daqui a pouco, quando estiver pronto para servir-me com uma caneca de kinburga e pão com ovos.
Joss entendeu aquilo como uma ordem, e imediatamente dirigiu-se para trás do balcão e pôs-se a organizar e limpar tudo antes de preparar o pedido. Tomou um pano molhado de dentro do balde que repousava ao lado das gavetas e torceu-o até deixá-lo úmido, e depois o passou pelo balcão, pelas canecas, talheres, pratos e barris. Desejava ver tudo cintilar ao contato com a luz.
Quando terminou, despachou o pano na vasilha e iniciou seu trabalho como cozinheiro.
Enquanto enchia a caneca com a famosíssima kinburga, teve receio de depois ter que entregá-la ao homem. Era mais forte que a cerveja Ede, do leste de Alestan. Provocava diversas vezes alucinações e dava uma sensação de invencibilidade caso a bebesse demais.
Mas no fim quem se daria mal seria o viajante, e não Joss. Certo disso se desfez do ridículo pensamento e o entregou a caneca cheia até a borda, que portava o líquido marrom e de aparência agradável.
O homem agradeceu com um leve movimento dos lábios, bebendo um gole e saboreando ao máximo o delicioso gosto que facilmente poderia tornar-se um vicio.
- Eu não bebo isso há muito tempo. Meses, talvez – revelou.
Joss assentiu, sem saber muito bem o que dizer.
- Então espero que tenha ficado feliz ao encontrar minha hospedaria, aqui no meio do nada – ele apanhou dois ovos de um prato e quebrou-os sobre uma panela acima da lareira.
O encapuzado riu.
- Você é quem vai ficar feliz, quando começar a receber visitas feito um ferreiro em época de guerra – ele bebeu um gole de kinburga. – Muitos soldados arlianos decidiram regressar pela Encruzilhada de Rios, então caso continuem pela estrada certamente se encontrarão com sua hospedaria.
O estalajadeiro tentou esconder um pequenino sorriso que brotou em seu rosto, mas sem sucesso. Era isso o que ele precisava saber; se passariam ou não pela encruzilhada. Finalmente teria sorte e não havia nada que poderia lhe retirar esse pensamento. Ao menos isso era o que achava.
- Isso será ótimo para os meus negócios – disse, virando os ovos com uma colher. – Mas são muito soldados? Ou uma ou duas tropas?
O homem esfregou a barba grande e negra, olhando para o teto, quando respondeu animado:
- Muitos ainda estão no Vale da Folha, mas virão para cá. Disso você pode ter certeza. Encontrei um grupo de soldados há dois dias e eles me disseram que todos seguirão este caminho. É seu mês de sorte.
- Isso é ótimo! Ótimo, ótimo e ótimo! – Joss não escondeu sua alegria e animação. – Ouvi dizer que os comandantes andam com globos de ouro para pagar os estalajadeiros do meio de estrada – ele retirou a panela pela alça e depositou os ovos num prato, com cuidado para que não quebrasse a gema. – Ou seja, o que custa dois gulos de ferro passa a valer um globo de ouro inteirinho! – seus olhos brilharam ao pensar nessa possibilidade. Se dois comandantes passassem por ali, já teria dois globos de ouro: o suficiente para abrir outra hospedaria num local bem mais movimento que aquele.
Pegou um pão de dentro de um saco de trigo e partiu-o no meio, e depois o colocou sobre o prato dos ovos ao lado de uma faca e colher. Aproximou-se devagar da mesa que o viajante escolhera e entregou-o a bela refeição matinal. Estava quente e saborosa.
- Num dia frio como esse, acho que qualquer comida quente deveria valer um globo de ouro! – disse o sujeito, brincando, enquanto lambia os próprios lábios. Recheou o pão com os ovos e deu uma mordida, de olhos fechados. Parecia não comer fazia meses, do mesmo modo como não bebia kinburga.
Com a boca cheia, observou atentamente o estalajadeiro, que limpava mais uma vez o balcão com o pano umedecido.
- Dragão Adormecido... Por que a hospedaria tem este nome? – perguntou curioso. Joss o olhou, com os olhos brilhantes. Tinha muitas histórias que desejava contar, já que estava muitíssimo feliz por conta das futuras visitas que teria. Mas ali contaria apenas uma. Por que o nome era Dragão Adormecido?
Entusiasmado, respirou fundo e explicou:
- Meu sonho sempre foi ter uma hospedaria num lugar distante, onde surgisse apenas viajantes com histórias emocionantes ou caravanas com produtos raros e interessantes. Então, movido pela vontade de realizar este objetivo, eu trabalhei arduamente e sem parar ao lado de meu pai, na cidade de Heurle, como padeiro. Ou ajudante de padeiro, pois ele era o dono; enfim, trate como quiser – ele pensou um pouco. – Eu lentamente fui conseguindo dinheiro e, após um tempo, decidi que era hora de partir. Meu lugar não era numa cidade como aquela, onde quase não passava viajantes contadores de histórias. Quando eu cheguei à cidade de Briceus, encontrei pessoas dispostas a construir a hospedaria ao meu lado por um preço muito baixo. Se não me engano, foram apenas três gulos de prata. Após alguns meses viajando para lá e para cá, terminamos de construí-la, neste lugar calmo e silencioso – ele abriu a boca, mas não emitiu som algum. Depois, quando formulou a frase, continuou:
- Além de calmo e silencioso, aqui era um lugar distante dos humanos e da população, propício para animais selvagens. Mas mesmo assim eu o escolhi. Durante tempos a hospedaria sem nome permaneceu adormecida, sem nenhum tipo de visitas, como até hoje acontece, e um dia parei para pensar. As pessoas mantêm distância de animais selvagens; e decidi tratar a minha hospedaria como um dragão adormecido, pois daqui ninguém se aproxima e a calmaria é absoluta.
O encapuzado aplaudiu, entediado, enquanto bocejava demoradamente.
- Eu gosto de saber o nome que tem por trás desses lugares – assumiu. – Algumas pessoas simplesmente inventam qualquer nome apenas para ter algum, mas ele fica vazio e sem significado – bebericou um gole da kinburga, já em seu fim.
- Sim, é verdade – Joss concordou distraído. Percebera que a chuva começara a cair outro lado da janela, devagar e calma.
Sem ao menos questionar sobre o preço, o homem deixou sobre a mesa dois gulos de ferro e levantou-se, se espreguiçando. Ficou ali, parado, durante algum tempo, inspecionando a chuva. Parecia animado em se molhar num dia frio como estava aquele.
- É hora de partir. Talvez eu retorne, um dia – disse ele, aproximando-se da porta. – Gostei de sua companhia e de sua história.
- Não acha melhor aguardar até que a chuva passe? – perguntou Joss, numa vã tentativa de persuadi-lo após a declaração repentina. Ele apenas deu de ombros, aproximando-se da porta.
- Tenho trabalhos a fazer. Ah! Eu já ia me esquecendo! – ele deu um tapinha na própria cabeça, como faz um mestre com seu aprendiz. – Meu nome é Drest Tristan. Se quiser me encontrar para conversar, vá até Briceus e na taverna Lamparina Eterna diga o meu nome ao taberneiro. Ele lhe dirá minha localização.
Joss esperava que fosse algo mais importante, portanto disse em tom formal:
- É um prazer conhecê-lo, Drest. Meu nome é Joss.
Drest acenou como um sinal de despedida e retirou-se num estrondo de porta se fechando e chuva se enfurecendo.
E mais uma vez Joss permaneceu sozinho na hospedaria, enquanto observava a figura do homem encapuzado e misterioso passar como um lampejo à frente das janelas. Sabia que jamais tornaria a vê-lo; a não ser que ele realmente visitasse a estalagem novamente.
O dia seguiu calmo e escuro, sem muito que se fazer. Joss tentou ler alguns de seus livros, como a Queda do Império de Ermia, que descrevia detalhadamente como o antigo reino tornou-se Wistan. Porém ele já havia lido e relido aquele livro tantas vezes que até perdera a conta. O único que nunca havia lido, empoeirado e escondido bem no fundo do baú de seu sótão, era um nomeado O Fim da Magia. Ele não acreditava em magia do mesmo modo como não acreditava em dragões. Eram lendas, criadas por contadores de histórias para serem utilizadas em canções infantis ou iludir a cabeça de jovens princesas.
Desanimado por não ter encontrado um novo livro ou alguma coisa para lhe manter atarefado após lavar o prato e repor os talheres utilizados por Drest no lugar, decidiu exterminar sua sanidade e beber toda uma caneca de kinburga.
Abriu devagar a torneira do barril carregado há duas semanas e viu jorrar todo aquele líquido amarronzado, como um tronco de árvore de poucos anos. Encheu a caneca – não até a borda – e sentou-se numa mesa ao lado da janela. Dali podia escutar o belo som de chuva caindo sobre barro e madeira, enquanto trovões às vezes acompanhavam o ritmo formando uma melodia assombrosa e, de certo modo, relaxante. Era bom escutá-la.
Portanto mais uma vez fora interrompido de seus pensamentos profundos e estranhos pelo ranger alto e desagradável da porta. Desta vez a luz não adentrou o local, somente água e todo um grupo de homens armados com espadas ou arco e flechas. Eram soldados. E arlianos.
Joss levantou-se e deixou de lado a kinburga, para evitar ficar bêbado na presença de visitantes.
Como sempre, sem saber ao certo o que dizer, aproximou-se do possível líder e disse:
- Que vocês, nobres soldados arlianos, fazem viajando no meio dessa chuva?
O homem o olhou, com desdém.
- Um homem nos disse uma coisa parecida há pouco tempo. E agora ele não está mais entre nós. – Ele virou-se para um dos soldados. – Leve os cavalos para os estábulos, Al. Não os deixe na chuva.
O soldado obedeceu, retirando-se da hospedaria com os passos acelerados. Joss encarou o líder, amaldiçoando a si mesmo por ter escolhido mal as palavras.
- Desculpe-me – apressou-se em dizer, preocupado. – Mas os estábulos...
O líder abriu a mão, revelando uma grande e grossa moeda. Era um globo de ouro. Um globo inteirinho de ouro. Jogou-o sobre o peito do estalajadeiro, que o agarrou com toda a força que conseguira, sorrindo disfarçadamente.
- Creio que isso dê para uma noite e informações.
- Certamente, senhor – Joss estava feliz. Muito feliz; mas aqueles homens pareciam sérios e furiosos, como se alguma coisa estivesse errada. E afinal, o líder nem sequer pediu uma refeição. Parecia estar mais preocupado com as informações que procurava que em dormir ou comer.
- Tenho uma história para lhe dizer, pois esta não deve permanecer em segredo – disse ele, puxando uma cadeira e sentando-se. Os outros soldados fizeram o mesmo, mas em mesas diferentes. Joss avistou pelo menos seis homens, contando com o qual saíra.
- Estou escutando – disse Joss. O que poderia ser? “Nada muito importante” pensava. Estava sendo contada para uma pessoa como ele, um simples estalajadeiro no meio de uma estrada. Mas o mínimo que podia fazer era fazer tudo o que ele pedisse: havia recebido um globo de ouro. Preferiu ficar calado e escutá-lo, palavra por palavra.
E durante muitos minutos, depois que Al retornara dos estábulos, o líder contou tudo o que acontecera em seu acampamento na noite passada.
Uma história como as que contam em tavernas e canções, histórias que Joss julgava não passar de mentiras mal-feitas. Mas pelo visto havia acontecido, e era tão real quanto podia imaginar.
Lua
- Spoiler:
- Fazia quase um dia inteiro que o trio fugitivo havia escapado. Correram para muito longe, até que seus pés cansassem e desistissem por conta própria.
Era manhã quando decidiram parar para descansar à beira de um pequeno lago. Lá beberam água e comeram a refeição que o guarda lhes providenciara, no dia anterior. A escassez de alimento era visivelmente alta, porém aquilo fora a única coisa que conseguiram. Estiveram ocupados demais, fugindo, para fazerem algo como parar e colher maçãs, acerolas ou o seja lá o que fosse.
Quando se acomodaram num milagroso abrigo formado por uma árvore caída sobre uma vala, desabaram num sono profundo e curto. Embora, é claro, tivessem realizado turnos para vigiar o local. O lago facilmente poderia atrair homens sedentos que conseqüentemente poderiam ser Aeluin acompanhado de seus outros soldados.
Assim, este pensamento fora um dos principais motivos para o qual escolheram dormir sob a árvore. Mas, ao invés de Aeluin comparecer no lugar, foi uma devastadora chuva quem decidiu visitá-los. Isso os obrigou a permanecer espremidos na vala, pois por mais espaçosa que ela fosse, o tronco da árvore continha alguns buracos e por eles escorriam devagar as gotas de água.
E a tarde passou, tal como o pôr-do-sol e o início da noite. Depois, após a escuridão ocupar todo o território, a chuva lentamente foi-se desfazendo e partindo noutra direção.
Neste momento Baudry despertou, com uma mão segurando-lhe o ombro. “Se quiser sobreviver, siga-nos!” foi o que escutou, pensando na luz cobrindo toda a tenda e pondo-a em chamas. Assustava-se e, estranhamente, encantava-se ao lembrar-se daquilo.
- Baudry? Você está bem? – perguntou-lhe Ulric, encarando-o. – Seus olhos estavam vidrados.
- Lembrei-me de ontem. Estou pensando nisso sem parar.
- Não há como esquecer – Ulric encostou-se nos ombros de Estmund, que dormia duramente. – Aquilo foi magia – ajeitou-se cruzando os braços e fechou os olhos. – Levante-se e dê uma volta por aí. Preciso dormir e aqui embaixo está apertado demais com todos nós juntos.
Baudry engatinhou até se livrar do teto de tronco e pôs-se de pé, mal enxergando na escuridão.
Dormira por quase meio dia, tirando os momentos nos quais fizera vigia há algumas horas. Quando a chuva iniciara, todos aproveitaram o momento para descansar e conversar, já que ninguém estava disposto a molhar-se para cumprir o tempo de guarda.
Mas agora a chuva terminara e mais uma vez retomaram o ciclo de vigia. Primeiro Ulric, depois Baudry e, por último, Estmund. Era pouco tempo de descanso para cada um, mas já fazia horas que estavam ali e isso pouco importava. Desejavam apenas que o sol aparecesse.
Baudry caminhou até a beira do lago, que portava o reflexo trêmulo da lua minguante. Não era comum aquela fase da lua naquela época. Estava no início do ano. Mas isso não lhe surpreenderia tanto quanto sobreviver à magia e a uma batalha entre geryons e homens.
Sentou-se, pensativo e triste com tudo o que poderia estar acontecendo em sua antiga vida. Já pensara nisso muitas e mais vezes. Estaria no território érmico, longe de guerras ou capturas mentirosas, talvez próximo da casa de seu irmão. Mas tudo acontecera como num livro de contos de fadas, com seu destino tendo uma reviravolta assustadoramente repentina capaz de causar-lhe um enfarte.
Fugir ao lado de Ulric e Estmund não seria para sempre. Eles tomariam rumo próprio e retornariam para casa como soldados de guerra, muito provavelmente sendo recebidos com uma grande e bela festa.
Não. Não adiantaria pensar em nada. Era hora de parar. Estava completamente confuso e perdido, não importava onde fosse: em sua mente ou no próprio mundo a sua volta.
Porém não tinha nenhuma pretensão de desistir tão rápido quanto seus pensamentos diziam, por mais confuso que estivesse. Sendo assim, confiante, desfez-se dos pensamentos tristes e tornou a prestar atenção em seu dever. “Viverei o presente simplesmente como me vier à cabeça. O passado é resto, então que suma junto com suas consequências” motivou-se por fim e atentou-se à natureza ao seu redor.
Procurou primeiro por sinais de movimento. Qualquer barulho seria motivo de despertar seus companheiros, para evitar que fossem mortos ou sequestrados escondidamente na escuridão da noite.
Mas não conseguiu escutar nada. O que tinha ali era silêncio, tão ensurdecedor quanto seria o da carroça no dia anterior caso não tivesse cavalos. Silêncio e noite. Uma combinação assombrosa, que vez ou outra provocava Baudry com um frio suspeito na espinha. Sempre quando isso acontecia, ele virava-se para trás esperando encontrar alguém se aproximando cautelosamente com uma faca nas mãos.
Até que refletiu que não havia chance de um assassino surgir ali para matá-los. O máximo seria Aeluin. Mas refletiu de novo e deduziu que ele já os teria alcançado, caso tivesse saído vitorioso na noite passada. Tendo em mente tudo isto, restara a Baudry duas opções óbvias e que tinham chance de ter ocorrido: ou eles haviam sido mortos ou seguiram o caminho sem preocuparem-se com os fugitivos.
Mas por que estava pensando nisso? Não estava preocupado. Baudry sabia disso, mas tentava não assumi-lo. Sabia tão bem quanto Estmund e Ulric que ninguém apareceria ali. Os três podiam estar muito mais longe, a meio caminho de alguma grande cidade, mas por algum motivo tinham parado. Fosse talvez pela beleza incomparável do lugar, entretanto esconderam este pensamento e acreditaram que estavam muito cansados. Assim, o que tinha como objetivo tornar-se minutos de descanso se tornou metade de um dia inteiro.
Alguma coisa acontecia ali.
Então Baudry notou como estava frio; o que discordava da época em que se encontrava, tal como fizera a lua.
Na verdade, conseguiu notar que aquele lugar era diferente. O próprio lugar lhes fizera ficar. Ele havia os atraído como faz uma mulher sedutora a um belo homem. A água do lago portava o reflexo da lua brilhante e exalava uma sensação boa. Semelhante a qual sentira quando ficara com os olhos presos na luz mágica, antes da tenda acender em fogo.
E as árvores eram grandes. Os carvalhos, especificamente. Ali havia somente carvalhos, diferente do que Baudry esperava daquela região. Mas todos eles erguiam-se altos e sábios, ainda belos, como anciões que possuíam todo um conhecimento de mais de cem vidas e que ainda estavam jovens. Determinados a viver mais vidas.
E um farfalhar de folhas secas sendo pisoteadas ecoou no silêncio escuro. Baudry virou-se, desperto, e deparou-se com Estmund caminhando a passos lerdos e calmos. “Graças aos Divinos” pensou aliviado.
- Não deu sua hora ainda. Acabei de vir – explicou, irritado por ter perdido todo o encanto ao pensar solitário sobre o local. Estmund sentou-se ao seu lado e ignorou o comentário.
Baudry o observou com certa curiosidade, enquanto ele erguia os olhos para a lua e depois para o reflexo. Pareceu ocupar pensamentos igualmente encantados.
- Este lugar é estranho, não é? – perguntou Baudry, veemente tentando iniciar uma conversa. E pelo visto conseguira.
- Não teria nada de interessante aqui, não fosse por isso – Estmund apontou para o reflexo da lua.
Baudry pousou a mão no joelho e ergueu uma sobrancelha.
- O reflexo?
- Por parte. Referi-me mais precisamente à lua. Essa é a forma que a lua oferece poder. Quando ela está refletida em alguma coisa.
- Mas este é apenas reflexo dela – disse Baudry, sem compreender o que Estmund lhe dissera. Louco.
- Isso não é simplesmente um reflexo. Por que acha que estamos aqui há tanto tempo?
Baudry pensou.
- A chuva e a noite – mentiu.
- Sabemos que não é isso. Não sabíamos que iria chover. O tronco caído, um ponto para o lugar oferecer certo abrigo. O lago, dois. Dizem que para ser bom precisa-se de três. Acha que há três pontos positivos aqui?
- Não... – a voz morreu. – Sim, na verdade. Mas não sei exatamente. Não tem como descrever.
- Existem dois pontos positivos bem concretos aqui. E já que um deles você não sabe dizer o que é exatamente, talvez não exista. Mas você prefere acreditar que sim. Tal como seus companheiros, eu e Ulric. Pode provar que ele existe?
A conversa não parecia tomar nenhum rumo. Mas chegando a este ponto, que tanto intrigava Baudry, acabou por fazê-lo continuar.
- Temos uma sensação. Parecida com as da luzes no acampamento. Parecida com...
- Magia – completou Estmund, sorrindo. – A magia sempre existiu, de acordo com os livros que eu costumava ler. Apenas não estava em nenhum humano. Podia estar numa espada, numa árvore ou em um lago – ele apontou para a lua. – Mas ela sempre existiu na lua, que desde sempre deu força aos magos. Você provavelmente já ouviu histórias que contam isso.
- São minhas favoritas, posso lhe dizer – disse Baudry, olhando o reflexo e lembrando-se de sua infância. – Mesmo não escutando nada assim há muito tempo, eu me lembro. Quando a lua se reflete na fonte de magia que o mago usa, ele se torna mais poderoso.
Estmund assentiu.
- Mas não é por conta da lua que temos essa sensação agradável. Você ouviu histórias. Sabe dizer o que é isso.
Seria tão simples quanto Baudry imaginava que fosse?
- Os magos já vieram aqui. E provavelmente lutaram muito para deixar restos de magia no lago.
- Sim. No lago – concordou Estmund. – Abusaram muito da magia usando a água e ela se tornou parte do lago. Existem muitíssimos poucos lugares que ainda guardam vestígios da magia e este é um deles.
- Então o que tomamos mais cedo nos deu magia? – perguntou Baudry. Tinha dúvidas e reconhecia que muitas o fariam parecer idiota. Por isso, decidiu guardar o resto.
- Algo parecido, eu acho – disse Estmund, aparentemente tratando a pergunta com muita seriedade. – Na verdade, um parecido muito longe. Como pôde perceber, quando dormiu, a sensação permaneceu mesmo longe do lago. Isso não lhe deu magia, apenas o gosto de estar presenciando uma bem distante, no passado.
- Você entende muito dessas coisas – Baudry encarou-o. – Nada pelo que um soldado poderia se interessar.
Estmund respirou fundo.
- Nosso passado guarda lembranças. Algumas queremos esquecer e outras queremos guardar. A maioria eu gostaria de esquecer, porém gosto de saber sobre magia. Estudei muito na juventude a fim de fazer algo parecido com a alquimia. Mas as coisas mudam – ele baixou os olhos. – Eu me tornei um soldado com o conhecimento de um alquimista. Diferente do comum. Mas fico feliz de presenciar algo como o que aconteceu no acampamento.
Baudry decidiu encerrar suas perguntas. Ele pareceu se entristecer com a última e poderia fazer o mesmo com qualquer outra. Estmund era um homem misterioso, muito diferente por sinal: sua conversa fora extremamente estranha para Baudry e para ele fora como qualquer outra que se tem com um velho amigo.
E isso apenas aumentou sua reputação de louco que Baudry suspeitou desde o início. Era estranhamente inteligente e tinha um modo distinto de falar. Assemelhava-se muito a um estudioso ou alquimista que se interessou tanto pelo trabalho que não soube mais diferenciar realidade de ficção.
Ele levantou-se, batendo com as mãos na calça e espreguiçando.
- Bem, acho que é hora de partir. Já dormimos muito.
-Partir à noite? – perguntou Baudry franzindo a testa.
- Sim, à noite. Ou quer esperar amanhecer e correr o risco de Aeluin nos encontrar? Ou os geryons, que são os “donos” dessa região? E para esclarecer, iremos bem devagar. Andando.
Baudry assentiu relutante. Aquele homem era realmente louco.
Os dois foram até a parte da vala sob a árvore e cutucaram Ulric, que acordou espantando ao sentir ambos os toques.
- O que foi? Já é minha hora? – perguntou.
- Vamos embora daqui – declarou Baudry, entreolhando Estmund.
Ulric resmungou, indisposto a desafiá-los numa discussão sem fim. Simplesmente respirou fundo e retirou-se da vala cheio de energia. Apesar da escuridão, estavam todos muito bem descansados e mais que preparados para seguir em frente.
E sob o luar, o trio rumou em direção ao norte, quebrando então o silêncio por onde passavam. Nenhum deles conhecia aquela região. Não sabiam o que lhes aguardava adiante.
4º Capítulo e posteriores:
http://fanfiction.com.br/historia/393084/O_Retorno_Do_Mago
Postado até o 7º, atualmente. 19/12
Última edição por FilipeJF em Qua Dez 18, 2013 10:02 pm, editado 3 vez(es)